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As crianças e as redes: por que o que elas pensam importa

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  • Post publicado:11 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

A escuta atenta a todos os setores envolvidos com as crianças e a internet é o melhor caminho para a elaboração de estratégias de proteção virtual

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Monteiro Lobato, nosso maior escritor infantojuvenil dizia: “A mim me salvaram as crianças. De tanto escrever para elas, simplifiquei-me”. Dentre as muitas qualidades de Lobato como autor estava essa: ele era capaz de adentrar o universo infantil e falar para elas, como elas, sem ser uma delas. E isso com certeza se devia à sua imensa capacidade de observá-las, afinal de contas, quem, senão uma pessoa que compreendia como ninguém a curiosidade que move as crianças, inventaria uma personagem como a boneca Emília, capaz de definir a mentira, por exemplo, com tamanha simplicidade e ao mesmo tempo moldada por uma incrível profundidade: “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso”. Um dos maiores legados que esse autor nos deixa, certamente, é a necessidade de ouvirmos as crianças para compreendermos o mundo em que vivemos.

Na coluna que escrevi sobre a questão da proteção às crianças no ambiente digital enfatizei que seria muito importante escutá-las quando se trata de questões que lhes dizem respeito, especialmente sobre um tema sobre o qual os adultos também não conhecem muito. Nesse sentido, a iniciativa da ONU intitulada Comentário Geral número 25, que foi criada em 2014 para realizar uma consulta em relação à convenção dos direitos das crianças no ambiente digital, para então elaborar um documento orientador para os Estados signatários, e que contou com a participação de especialistas e organizações internacionais, foi extremamente atento à questões que envolvem o tema e entrevistou crianças do mundo inteiro. O texto do Comentário esteve aberto à consulta pública duas vezes, e a edição passada, a qual tive acesso por meio do Instituto Alana que, através de seu programa Criança e Consumo, contribuiu a fim de destacar, entre outros temas, a proteção contra a exploração comercial infantil no ambiente digital, é mesmo uma preciosidade para quem deseja entender a relação das crianças com o universo online. O documento parte do pressuposto de que os direitos da criança devem, também, estar garantidos no ambiente digital, isso porque elas estão navegando na internet, tenham ou não idade e permissão da família para isso. Como sabemos, a pandemia tornou o controle desse acesso ainda mais difícil, tendo-se em vista que as aulas passaram a ser virtuais e o acesso à rede tornou-se necessário. Nesse sentido, melhor apostar na educação e no diálogo com as crianças para protegê-las enquanto usam os inúmeros sites, redes sociais, aplicativos, etc. que estão disponíveis a um clique.

Dentre as inúmeras informações fornecidas pelas crianças no Comentário há algumas que são fundamentais para que possamos compreender como elas se relacionam com o ambiente digital: “Por meio da tecnologia digital podemos conseguir informações de todo o mundo”; “[A tecnologia digital] me apresentou aos principais aspectos de como eu me identifico”; “Quando você está triste, a internet pode te ajudar a ver algo que lhe traz alegria”, elas afirmam. Longe de estarem apartadas dos desafios que lhes esperam nas redes, as crianças pediram explicitamente ajuda para trafegarem ali com mais segurança: “Gostaríamos que o governo, empresas de tecnologia e professores nos ajudassem a gerenciar informações não confiáveis online”; “Eu gostaria de entender com clareza o que realmente acontece com os meus dados… Por que coletá-los? Como eles estão sendo coletados?”; “Eu estou preocupado com os meus dados sendo compartilhados”.

PRECISAMOS ENTENDER OS BENEFÍCIOS E ENCANTOS DA INTERNET PELOS OLHOS INFANTIS PARA CONSEGUIRMOS DIALOGAR COM AS CRIANÇAS SOBRE O ASSUNTO DE MANEIRA INFORMATIVA, CRIATIVA E, SOBRETUDO, EFICAZ

Ou seja, não é por falta de curiosidade que elas não se informam e se conscientizam a respeito dos desafios desse universo, no entanto, dados demonstram que elas continuam sendo a população mais acessível à desinformação, às fraudes e assédios online. Por que isso acontece?

Penso que talvez precisemos, de fato, estar abertos a entender os benefícios e encantos da internet pelos olhos infantis, aceitar que há diversas funções benéficas que o uso dessa ferramenta pode oferecer à essa população, despindo-nos de preconceitos e da visão alarmista de que lá tudo o que circula é “do mal”, para então conseguirmos dialogar com as crianças sobre o assunto de maneira informativa, criativa e, sobretudo, eficaz. Segundo afirma um dos grandes especialistas em educação para as mídias, o professor inglês David Buckingham, em seu Manifesto pela Educação Midiática, a abordagem defensiva ou protecionista em relação às mídias que boa parte dos adultos faz, tem efeito contrário: “Ela presume que, se pudermos incentivar as crianças a controlar seu próprio uso da mídia e a resistir a certos tipos de mensagens midiáticas e rejeitá-las, de alguma forma nós as protegeremos da influência da mídia. Essa abordagem frequentemente visa afastar completamente as crianças da mídia, reduzindo seu consumo e conduzindo-as a coisas ‘melhores’ (…) Na prática, os estudantes muitas vezes resistem a essa abordagem, mesmo quando parecem estar fazendo o mínimo exigido: eles a consideram condescendente e autoritária. Dar aos estudantes avisos reiterados sobre os perigos de um comportamento ‘inseguro’ ou ‘não saudável’ na mídia parece fazer pouca diferença duradoura na vida real”.

É claro que diante de estimativas globais de diferentes pesquisas realizadas no mundo que sugerem que um em cada três usuários de internet é uma criança com menos de 18 anos e que uma em cada três crianças está exposta a conteúdo sexual online não é tão simples assim encontrar uma fórmula que equilibre o uso saudável com a proteção necessária. Mas é preciso seguir buscando. Uma iniciativa interessante, além do Comentário Geral já citado, é a da Comissão Europeia, que recentemente lançou a nova estratégia para uma internet melhor para crianças (BIK+), que baseia-se num amplo processo de consulta com crianças, complementado por consultas específicas com pais, professores, Estados-Membros, TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) e indústria da comunicação social, sociedade civil, acadêmicos e organizações internacionais. A escuta atenta a todos os setores envolvidos com as crianças e a internet é, sem dúvida, o melhor caminho para a elaboração de estratégias de proteção virtual. Em uma outra ponta, há várias propostas nas quais os próprios adolescentes abordam essa temática, tal como o combate à desinformação, por exemplo, na qual falam com crianças e jovens da mesma idade. Esse é o caso do projeto MediaWise, que é uma iniciativa apartidária e sem fins lucrativos do The Poynter Institute, intitulado Teen Fact-checking que publica verificações de fatos para adolescentes e por adolescentes. Aqui no Brasil temos diversos projetos que buscam envolver os jovens na produção de conteúdos informativos sobre como lidar com as fake news, como o Fake ou News – É falso ou é notícia?, da Agência Lupa em parceria com o Canal Futura.

Talvez tenhamos que, de fato, aprender com Lobato, que se preocupou muito mais em provocar as crianças para que questionassem porque as coisas são como são (Emília faz isso em todos os livros!) do que explicar o que e como elas são. Parece que o maior perigo não está nas redes, mas na incapacidade de formularmos nossas próprias ideias e concepções sobre tudo o que vemos e vivemos no universo on e offline. Como disse o rapper MV Bill em entrevista à Revista Gama, revelando qual é o seu lema, o melhor que podemos fazer no momento é sermos nós mesmos, “administradores de nossas próprias ideias” e “continuarmos driblando os algoritmos”. É nosso papel ensinar (e aprender) às crianças e jovens como isso se dá.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.