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Desinformação numérica: até os números podem mentir

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  • Post publicado:11 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

Para compreendermos nuances e especificidades numéricas, é interessante refletirmos se realmente compreendemos a diferença entre dado, informação e conhecimento

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Nesse ecossistema informacional intoxicado em que vivemos é preciso falar sobre a “desinformação numérica”. Pois é, caro leitor, os números podem mentir. E muito. Talvez você nunca tenha pensado nisso porque, como muitos de nós, pertence a uma geração na qual gráficos, tabelas e tabuadas eram informações exatas nas quais confiávamos de olhos fechados. Ironicamente assim também era com a mídia: “saiu no jornal” era uma declaração formal de que o que ali estava registrado só poderia ser a mais pura verdade. Em tempos de pós-verdade, em que as crenças pessoais e as emoções contam mais do que os fatos, essa certeza tornou-se líquida, e até os números precisam ser questionados tanto quanto os textos, as fotos, vídeos e outras informações que circulam nos mais diferentes suportes comunicacionais. Nesse sentido, nunca é demais lembrar que, na Era da (Des)informação a verdade, as evidências e os fatos concretos importam. Sobretudo para que possamos não apenas nos manter vivos e saudáveis, mas para preservar os nossos direitos, exercer nossos deveres com ética e sustentabilidade, e garantir a liberdade de expressão e a democracia.

A complexidade do fenômeno da desinformação disseminada em escala global apelidou a mentira de muitos nomes, desde as famosas fake news passando por meia verdade, teoria da conspiração, viés de confirmação, contrainformação, narrativa, verdade alternativa, dentre outras nomenclaturas. Porém, é preciso apontar mecanismos para que todos nós, cidadãos globais, possamos reconhecer o que é um fato e o que é uma mentira. Como já dissemos algumas vezes, por mais complexo que pareça, para combater as tais fake news é preciso começar pela formação do pensamento crítico, tarefa para uma vida. “Todo mundo tem direito a ter uma opinião, mas não a ter os próprios fatos”, afirma o economista e político americano James Rodney Schlesinger. A tarefa, portanto, é a de ensinar (e aprender) a reconhecer evidências, a avaliá-las e então saber qual é a diferença.

“… essa é a diferença entre o pensamento criativo e o pensamento crítico, entre mentiras e a verdade: a verdade tem evidência factual e objetiva para suportá-la”, dispara o escritor, professor de psicologia e neurociência comportamental Daniel Levitin em seu livro “O guia contra mentiras: como pensar criticamente na era da pós-verdade” (Ed. Objetiva). De uma maneira bastante direta ele afirma que “pensamento crítico não significa desacreditar em tudo, significa que devemos tentar distinguir entre afirmações com e sem evidências”. E é aí que está o “pulo do gato”: ao contrário do que muitos acreditam, nem os números estão isentos de subjetividade, por isso, é preciso também adotar procedimentos de checagem desse tipo de informação.

A NECESSIDADE QUE O SER HUMANO TEM DE CONSTRUIR SIGNIFICADOS PARA O QUE VÊ, OUVE, LÊ, FALA E VIVENCIA FAZ TODA A DIFERENÇA QUANDO SE TRATA DE COMPREENDER A REALIDADE

 

A professora de ciências de dados da New York University Andrea Jones-Rooy, em um artigo publicado no site Quartz, intitulado “Sou uma cientista de dados cética quanto aos dados”, faz a pergunta fundamental para refletirmos sobre essa questão: “O que dizem os dados? Os dados não dizem nada. Humanos dizem coisas. Eles dizem o que percebem ou procuram nos dados — dados só existem, em primeiro lugar, porque os humanos escolheram coletá-los e os coletaram usando ferramentas feitas pelo homem. (…) Precisamos questionar os dados em vez de assumir que só porque atribuímos um número a algo ele é, de repente, a verdade dura e fria. Quando você encontrar um estudo ou conjunto de dados, peço-lhe que pergunte: O que pode estar faltando? Qual é outra maneira de considerar o que aconteceu? E o que essa medida específica considera, descarta ou incentiva?”.

Levitin chama essa técnica de “Infoliteracy”, que é a capacidade de “reconhecer que há hierarquias na qualidade das fontes, que pseudofatos podem facilmente mascarar-se como fatos, e vieses podem distorcer a informação que estão nos pedindo que avaliemos, nos levando a decisões infelizes e maus resultados”. Segundo ele, muitos creem que mentir com gráficos e tabelas, com números cheios de vírgulas e que tais é mais fácil porque as pessoas acham que é mais trabalhoso conferi-los, o que tem se mostrado verificável. A famosa “alergia à matemática” tem afastado muita gente do exercício de checagem de evidências que são a garantia de que determinada informação é acurada.

Para nos aproximarmos sem tanto medo dos números compreendendo suas nuances e especificidades, é interessante refletirmos se realmente compreendemos a diferença entre dado, informação e conhecimento. Segundo o professor do IME (Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo) da USP Valdemar Setzer em seu livro “Meios eletrônicos e Educação: uma visão alternativa” (Escrituras Editora), dado é “uma sequência de símbolos quantificados e quantificáveis”. Já informação é uma “abstração informal (isto é, não pode ser formalizada por meio de uma teoria lógica ou matemática), que está na mente de alguém, representando algo significativo para essa pessoa”. E conhecimento é “uma abstração interior, pessoal, de algo foi experimentado, vivenciado por alguém”. Porém, em nosso cérebro, nem sempre as coisas funcionam dessa maneira tão estanque, pois temos muitas variáveis interferindo na compreensão do que chega até nós e naquilo que experienciamos efetivamente. Segundo Setzer, “os dados, por outro lado, desde que inteligíveis, são sempre incorporados como informação, pois os seres humanos buscam constantemente por significado e entendimento”. Ele enfatiza que o conhecimento não pode ser descrito, pois é de ordem prática, ao passo que a informação é tangível e possível de comunicação.

A necessidade que o ser humano tem de construir significados para o que vê, ouve, lê, fala e vivencia faz toda a diferença quando se trata de compreender a realidade e, portanto, de diferenciar a mentira da verdade. Assim, uma das competências mais importantes a se conquistar para vencermos essa guerra da desinformação é adquirir um conjunto de conhecimentos que nos permita avaliar o que sabemos e sobretudo o que não sabemos. E aprendermos a lidar com isso, construindo um repertório de informações e conhecimentos que nos favoreça a reflexão, a avaliação dos fatos e contextos e sobretudo que nos permita tirar conclusões baseadas em todas essas variáveis, inclusive nas subjetivas, considerando o nosso conjunto de crenças e o caldo cultural no qual estamos imersos. Como disse aqui no artigo publicado em 3 de março de 2022, vemos crescer uma geração que não suporta a dúvida, e já tem até transtorno comportamental diagnosticado, o Fomo (abreviatura para “fear missing out”, em tradução livre: “medo de estar perdendo algo”), achando que pode saber de tudo (!) e denotando a dificuldade em conseguir delimitar o que pode e não pode conhecer e experimentar.

Mais do que nunca é bom lembrar que ser um cidadão global implica em ser autoconsciente, crítico e midiaticamente bem informado, objetivo primeiro da Educação para as Mídias. Como diz o sociólogo e filósofo Edgard Morin: “É preciso ensinar não só a utilizar a internet, mas a conhecer o mundo da internet. É preciso ensinar a saber como é selecionada a informação na mídia, pois a informação sempre passa por uma seleção. Informação não é conhecimento”. Da próxima vez em que vir números pela frente, resista ao impulso de virar a página ou de acreditar neles sem piscar, pois é saudável estar atento e cético: a mentira existe. De verdade.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.