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As guerras são construídas por meio de narrativas

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  • Post publicado:18 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

Não bastasse uma pandemia de proporções gigantescas como a da covid-19, que ainda é uma das doenças que mais mata no mundo, temos de lidar agora com uma guerra. E nesse mundo globalizado em que vivemos, não importa se a guerra é entre Rússia e Ucrânia, ela já está impactando a todos nós, ela é de cada um de nós. Com isso, a outra grande guerra com a qual nos deparamos cotidianamente – que é também parte constitutiva dessa que estamos vivendo -, a da desinformação, galopa “livre, leve (acho que aqui não cabe citar o ditado integralmente porque ela é muito, muito pesada) e solta”, acordando nossos medos, inseguranças e incertezas. É, o mundo anda por demais complexo mesmo, e por isso é cada dia mais imperioso tentar decifrá-lo em sua imensa confusão e peculiaridades, ou seremos devorados por ele.

Há alguns anos fiz uma entrevista para um projeto sobre o processo de crescimento da criança com a psicanalista Helena Maffei Cruz, à época dando aulas na ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) sobre as teorias do psicanalista Erik Erikson, e ela disse uma frase que me marcou profundamente dadas as implicações que tem para a compreensão sobre como amadurecemos, especialmente nos dias de hoje: “O ser humano está aparelhado e condenado a fazer teorias – ‘eu acho que, porque’. O caminho do amadurecimento é o caminho de suportar teorias mais incompletas. Quanto mais sofisticado é o seu aparelho de pensar, mais você suporta a dúvida. E porque você suporta a dúvida, torna-se um cientista. A diferença entre a ciência infantil e a ciência adulta – entre a ciência do homem primitivo e a do homem contemporâneo – é o quanto de dúvida a sua teoria suporta.” Eis aí um dos grandes desafios do homem moderno: suportar o não saber quando tem (ou pensa que tem) um mecanismo de busca e pesquisa que vai lhe contar tudo (ou quase!) sobre o que deseja saber. O conhecimento a um clique, a sabedoria instantânea. Doce ilusão. A desinformação entrou em cena para nos mostrar que estamos expostos a um sem número de informações falsas, imprecisas, adulteradas, equivocadas, parcialmente corretas ou propositadamente “editadas”. Essa avalanche da “má informação” nos confunde, angustia, deprime, imobiliza e é aí que mora o perigo.

Nos últimos dias ouvi muita gente dizer que estava “desistindo de entender essa guerra” já que há “uma guerra de narrativas” e as versões são tantas, que se corre o risco de não entender a História com “H” maiúsculo. E por que queremos entender a História? Porque somos parte dela, e a estamos construindo, de um jeito ou de outro, tanto no mundo on como no off-line. “As nações se escrevem pelas histórias que contam. A cada dia, mais histórias são criadas que os ucranianos contarão por gerações. O presidente que se recusou a deixar a capital dizendo aos EUA que precisa de munição, não de carona. Os soldados da Ilha das Cobras que disseram a um navio de guerra russo ‘fodam-se’. Os civis que tentaram impedir o caminho de tanques russos se plantando na frente deles. É com isso que nações se constroem”, afirmou o historiador Yuval Harari, em um artigo recentemente publicado no jornal The Guardian. Ou seja, os fatos importam, as notícias fazem muita diferença em nosso dia a dia, e tudo o que buscamos nesse momento é entendê-las para não apenas saber quem somos, mas sobretudo para saber o que fazer nesse momento tão conturbado na história da humanidade.

NA GUERRA CONTRA A DESINFORMAÇÃO, A COMPLEXIDADE É O DESAFIO, E A GRANDE ARMA É ENCARAR A DÚVIDA COMO MATÉRIA-PRIMA DA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

E por que as notícias são tão importantes? Durante uma guerra, uma pandemia e uma crise climática como a que estamos vivendo, informações precisas são uma fonte de segurança emocional, física e digital. Elas são fundamentais para a nossa integridade corporal, a de nossos filhos, das nossas comunidades, para o equilíbrio da nossa saúde mental, para a estabilidade das nossas finanças, instituições, governos e do próprio planeta, e também para a construção das nossas identidades sociais e culturais. Por tudo isso precisamos saber se as informações que estamos acessando são confiáveis. Daí a importância da Educação para Mídias, que pode ser um instrumento poderoso para ajudar as crianças e jovens a desenvolverem modos de ser e pensar que as façam sentir mais confortáveis com a incerteza e assim, percebam que a complexidade das situações a que estão expostas não deve impedi-los de tentar desvendá-lo e de atuarem como cidadãos em busca da resolução dos problemas que estão postos para a sua geração.

Nesse sentido, é fundamental que recuperemos urgentemente o ensino dos procedimentos das chamadas ciências sociais. É preciso exercitar a objetividade como método e não como o que alguns já chamam de “neutralidade performática”, ou seja, uma pseudo-objetividade que muitos jornalistas ainda insistem em dizer que faz parte de sua prática. A objetividade não é algo impossível de ser praticado, ela é composta de procedimentos que as chamadas ciências humanas têm como pilares, como aquele que parte do princípio de que, antes de se contar uma história é preciso conhecer todas as evidências possíveis, é imperativo usar a razão fazendo muitas perguntas, testar o bom senso (que não é o senso comum), analisar todas as ideias contidas naquele contexto, para então tentar chegar o mais próximo possível do que seria “a verdade”. A narrativa construída e relatada em quaisquer meios é o resultado desse processo.

Rodrigo Tavares, professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal, em seu artigo publicado na Folha de S.Paulo ressalta a importância de se resgatar as competências e habilidades que são caracterizadas como pertencentes às humanidades, lembrando que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) destaca que a capacidade de analisar criticamente e de resolver problemas, de mostrar iniciativa, inovação e criatividade e a capacidade de ser flexível, tolerante e resiliente serão as competências mais importantes para o cidadão do século 21. “Ao invés de treinarmos os alunos para memorizarem a verdade, temos que inspirá-los a criá-la; em oposição ao cultivo de uma única especialidade, temos que fecundar a sua capacidade de adaptação; para superar o seu natural autocentrismo, temos que dar-lhes a oportunidade de experimentarem as ansiedades de terceiros”, enfatiza.

Nunca é demais lembrar que não estamos lidando com um fenômeno novo. A desinformação sempre foi uma arma de guerra. Usar informações propositadamente ambíguas ou pouco precisas como fagulhas para iniciar um conflito não é uma tática nova. Há mais de 2.000 anos, o estrategista militar da China antiga Sun Tzu já afiançava que a “guerra indireta” é uma das formas mais eficazes de se combater os inimigos. O inédito é que a desinformação não é mais apenas uma arma da guerra física no corpo a corpo entre países ou coalizões, mas uma peça na engrenagem de uma outra batalha travada no mundo paralelo das redes sociais, que envolve outros componentes de poder e disputas. Nesse sentido, aprender a ler a guerra contida nos memes, nas hashtags, nos posts e vídeos dos tiktokers é exercitar muito mais do que a sobrevivência sustentável e saudável nesse universo informacional é, sobretudo, praticar a cidadania digital de maneira participativa e engajada. Como afirma Henry Jenkins, um dos grandes pesquisadores de mídia do nosso tempo “[…] no momento em que tomamos nas mãos o controle das tecnologias de mídias para contar histórias de maneiras poderosas, interagindo com outros participantes na criação e circulação de conteúdos, estamos deixando para trás a cultura do espectador e do consumo passivo.”

Na guerra contra a desinformação, a complexidade é o desafio, e a grande arma é encarar a dúvida como matéria-prima da construção do conhecimento. É preciso, mais do que nunca, transformar os olhares e os modos de atuar, como bem ensina o grande mestre escritor e contador de histórias Ítalo Calvino: “Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço. Não se trata, absolutamente, de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.” A guerra está posta – e postada! -, só nos resta lutar (e porque não, tuitar!).

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

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