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A alfabetização midiática como um bem público

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  • Post publicado:18 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

A mídia está na mídia. Tão evidente que virou notícia diária e preocupação mundial. Fake news, violência contra jornalistas, ataques às mídias independentes, utilização do discurso de ódio como forma de ameaçar repórteres mulheres, e por aí vai. Como diria uma de nossas grande poetisas, Cecília Meireles:

“Que faremos destes jornais, com telegramas, notícias, anúncios, fotografias, opiniões?

Caem as folhas secas sobre os longos relatos de guerra: e o sol empalidece suas letras infinitas.

Que faremos destes jornais, longe do mundo e dos homens? Este recado de loucura perde o sentido entre a terra e o céu”.

Esses relatos de loucura que perdem o sentido entre a terra e o céu têm impactado a nossa vida cotidiana mais do que gostaríamos, esses “relatos do mundo” – título de um filme da Netflix com Tom Hanks que recomendo fortemente – que agora nos chegam para além das páginas impressas dos jornais, mais confundem do que organizam o nosso pensamento e, cada vez mais, precisamos de muito discernimento para continuar tentando entender onde estamos, quem somos, para onde vamos. Não que essas perguntas tenham uma resposta objetiva, mas até mesmo para continuarmos a fazê-las é preciso ter alguma informação a nos amparar. Pois é, informação é poder na Era da Desinformação.

Com o tema Alfabetização Midiática e Informacional como Bem Público, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), através da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional, fundada em 2013 e hoje presente em mais de cem países, lança a Semana Global de Alfabetização Midiática que acontecerá entre os dias 23 e 31 de outubro. Durante esse período, pessoas e instituições do mundo inteiro farão campanhas, pôsteres, postagens nas mídias sociais, eventos em escolas, empresas e diversas instituições, para promover a conscientização dos indivíduos de que a informação de qualidade é um direito – e uma necessidade! – de todo cidadão e que é dever de cada um de nós trabalhar pela promoção de um ambiente informacional mais cordial, justo e sustentável.

Nos últimos dias assistimos à concessão do Prêmio Nobel da Paz a dois jornalistas: Maria Ressa e Dmitry Muratov, que foram agraciados “por sua corajosa luta pela liberdade de expressão nas Filipinas e na Rússia”, como explicou a Fundação Nobel. Um enorme reconhecimento ao trabalho da imprensa como forma de resistência às constantes ameaças à democracia e ao exercício da liberdade individual de todos os cidadãos do mundo. Nesse sentido, o prêmio reconhece e reforça a importância do tema que a Mil Alliance enfocará em seu evento anual.

Desde 1987 pesquiso sobre a importância da Educação Midiática, Literacia para as Mídias, Pedagogia das Mídias ou Educomunicação e nunca tive dúvida de que, sem a presença desse assunto nas esferas educacionais – escolas, bibliotecas, centros culturais, dentre outros espaços que promovem o conhecimento – não haverá a formação de cidadãos conscientes de seu papel nessa sociedade em que vivemos. Hoje temos quase 60% de pessoas conectadas à internet no planeta (dados de janeiro de 2021) e aproximadamente 70% da população jovem tem algum tipo de contato com o universo digital. Não há como formar e informar para que tenhamos uma participação efetiva no acesso, produção e compreensão do que circula nas redes sem uma educação pensada exclusivamente para esse fim.

NÃO HÁ COMO FORMAR E INFORMAR PARA QUE TENHAMOS UMA PARTICIPAÇÃO EFETIVA NO ACESSO, PRODUÇÃO E COMPREENSÃO DO QUE CIRCULA NAS REDES SEM UMA EDUCAÇÃO PENSADA EXCLUSIVAMENTE PARA ESSE FIM

Segundo a Unesco em seu currículo para formação de professores de 2013 a alfabetização midiática e informacional faz-se imprescindível porque propicia “a compreensão e o uso das mídias de massa de maneira incisiva ou não, incluindo um entendimento bem informado e crítico das mídias, das técnicas que elas empregam e dos seus efeitos. Também inclui a capacidade de ler, analisar, avaliar e produzir a comunicação em uma série de formatos de mídias. Pode ainda ser compreendida como a capacidade de decodificar, analisar, avaliar e produzir comunicações de diversas formas.”

Segundo o Office of Communications, conhecido como Ofcom, que é a autoridade reguladora e de concorrência aprovada pelo governo para as indústrias de radiodifusão, telecomunicações e correios do Reino Unido, a educação midiática é “uma habilidade para acessar, entender e criar comunicação em uma variedade de contextos”. Um dos maiores estudiosos desse assunto, o professor inglês David Buckingham explicita o que isso quer dizer: “‘Acessar’ inclui as habilidades e competências necessárias para localizar conteúdos de mídia, usando tecnologias e softwares disponíveis. ‘Entender’ é a habilidade de decodificar e ou interpretar as mídias, o conhecimento sobre o processo de produção e os padrões de controle institucional, e a habilidade de criticar a mídia, em termos de veracidade e confiabilidade de suas representações do mundo real. E ‘criar’ tem a ver com a habilidade de usar a mídia para produzir e comunicar suas próprias mensagens, em uma proposta de autoexpressão para influenciar ou interagir com outras pessoas”.

Os jovens estão mais conectados, mas os resultados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) coordenado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mostram uma educação que tem desconsiderado a necessidade de prepará-los para lidar com as informações disponíveis no mundo digital. Boa parte dos alunos – exceto em países que investem maciçamente em educação como a Finlândia – não sabe diferenciar um texto informativo de um opinativo, um anúncio comercial de uma notícia.

Para o PISA, a leitura vai além de extrair informações, é muito mais sobre construir conhecimento, pensar criticamente e fazer julgamentos bem fundamentados. Como parte do Projeto Educação 2030, a partir de 2024 as avaliações da rede estarão mais focadas no aprendizado sobre o universo digital. Para a OCDE, a educação do futuro deve se concentrar em ajudar as pessoas a desenvolver uma bússola confiável para navegar em um mundo cada vez mais complexo, incerto, ambíguo e volátil.

A Unesco pretende, por meio da sua Aliança Global, contribuir para a execução da agenda internacional dos objetivos do milênio, que até 2030 tem como objetivo avançar nas áreas de educação, saúde, equidade de gênero, empregabilidade, sustentabilidade. Sem a consciência do nosso direito à informação e de como podemos atuar criticamente sobre e por meio dela, essa agenda será inalcançável. A outra iniciativa da Unesco, intitulada “mil clicks” tem como slogan deste ano o convite: “Clique sabiamente, criativamente e criticamente”. Se clicamos inúmeras vezes ao dia, que isso seja feito de maneira consciente, não é mesmo?

Qualquer pessoa pode se engajar na semana mundial de Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco, é só cadastrar sua iniciativa no link. Em meio a essa “desordem mundial” é preciso nos juntarmos à iniciativas como estas que reconheçam e promovam a concepção da informação como um bem público, como algo que ajuda a promover as aspirações coletivas e que constitui o alicerce fundamental para o conhecimento e para a democracia.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/A-alfabetiza%C3%A7%C3%A3o-midi%C3%A1tica-como-um-bem-p%C3%BAblico
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