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A roleta russa do Twitter

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  • Post publicado:1 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Entrevistas

Na rede onde dar opiniões é a principal moeda, cancelamentos constantes e discussões consideradas absurdas levantam um alerta sobre sua relevância

Já sabe do último cancelado do Twitter? A pergunta é curta e aparentemente simples, mas nem sempre fácil de responder. Só no último mês, pode se referir a Chris Rock, pela piada que fez sobre o cabelo de Jada Pinkett Smith durante o Oscar, ou então a Will Smith, pelo tapa que desferiu no comediante logo em seguida. Pode estar falando de uma mulher, até então anônima, que achou graça em ganhar do pai cinco potes de um sorvete caro. Ou até mesmo de uma onça-pintada, animal carnívoro que cometeu o terrível ato de comer carne, foi flagrada e teve as imagens desse momento postadas na rede.

 

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Os exemplos se multiplicam para muito além desses, até porque as polêmicas surgem no Twitter com uma frequência quase diária — e geralmente também desaparecem em tempo recorde, sem deixar pistas. Mas por que destacar apenas uma rede quando todo o macrocosmo de mídias sociais hoje se baseia em pitacos e opiniões sobre tudo e nada?

Para Nina Santos, que pesquisa a disseminação de informações em plataformas digitais no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital, a dinâmica do Twitter tem sim certas peculiaridades na comparação com outras plataformas. Além de possuir uma timeline com comentários que se atualizam rapidamente e o tempo todo, os 280 caracteres por post torna muito fragmentados os pontos de vista que surgem nesse ambiente. “Essa restrição de espaço faz com que opiniões menos elaboradas — não necessariamente menos complexas — ganhem muita proeminência.” Segundo a pesquisadora, ali não basta só ter uma opinião. É preciso também saber expressá-la de forma concisa, simplificada e impactante.

Existe também, na opinião da acadêmica, uma expectativa injusta em cima do Twitter como um espaço de discussão de assuntos relevantes. Na verdade, segundo ela, a rede está menos para um auditório de debates sociais do que para uma mesa de bar. Se lá os temas políticos se misturam a uma discussão sobre última rodada do Brasileirão, no Twitter eles desfilam em meio a fotos de gatinhos e cliques da última refeição que você fez. Para Santos, aliás, a importância da rede “vem justamente do fato de não ser exclusivamente política ou de temas de interesse público”, o que garante mais visibilidade do que plataformas focadas só nisso, que são restritivas em termos de público. “O fato de esse espaço reunir diversos interesses, tipos de conversas e pessoas é o que faz com que temas de maior impacto social tenham tanta atenção.”

O Twitter dá espaço para expressarmos nossas concepções de mundo com uma moralidade muito intensa

Ao tratar de questões que tocam em problemas sociais, como assuntos morais ou políticos, o maior incentivo a dar opiniões é o fato de trazerem em si fortes estímulos emocionais, diz o professor de filosofia e ciências sociais do Instituto Federal de Minas Gerais José Costa Júnior, que estuda a intersecção entre ética e novas tecnologias. “O Twitter dá espaço para expressarmos nossas concepções de mundo com uma moralidade muito intensa. E a gente tem certezas morais muito profundas, principalmente em temas como o aborto ou a corrupção.”

Quando Will Smith dá um tapa em alguém para defender a esposa, isso provoca uma indignação moral de vários lados, algo que “pode levar a um debate até mais profundo sobre o que a gente espera dos nossos heróis, dos nossos astros.”

O grande problema das discussões nas redes sociais é que as pessoas podem esquecer que há seres humanos do outro lado. E isso não é figura de linguagem, mas algo comprovado por estudos, aponta Júnior. “Há um debate intenso sobre a desumanização nas redes sociais. Se a gente tiver um debate acalorado frente a frente, vou ver suas reações e ter mais cuidado com o modo de me expressar. Mas, quando o que vejo é uma tela cheia de opiniões diferentes, não vou ter as mesmas restrições.” Nesse casso, ele diz, é natural enxergar o outro como inimigo ou até alguém que merece ser eliminado. “Em vez de uma pessoa, passo a ver uma causa contra a qual tenho que me manifestar.”

O estranho caso dos potes de sorvete

Se no Twitter as polêmicas em torno de algum tema, geralmente de pouca relevância, acontecem com frequência diária, uma das questões acabou ganhando destaque até fora das redes sociais, indo parar nas páginas dos jornais. A polêmica envolvia um pós-operatório, uma famosa marca de sorvetes e um pai excessivamente preocupado com o bem-estar da filha. A receita, que a paulista Catharina Lima, 40, pensou que geraria apenas uma postagem divertida, acabou virando um caso de cancelamento.

Lima, que, por recomendação médica, precisaria tomar sorvetes por alguns dias para se recuperar de uma cirurgia, postou uma foto dos cinco potes da gelateria brasileira Bacio di Latte que o pai enviou para sua casa. Em vez de comentários engraçados sobre o excesso de zelo paterno, no entanto, o que se viu foram falas que problematizavam desde o privilégio financeiro de poder comprar tanto sorvete, ainda mais de uma marca considerada cara, até uma suposta falta de consciência do post em relação a pessoas que não têm o pai presente em suas vidas.

A grande sacada é um leitor saudavelmente cético, aquele que desconfia

“Essa problematização é a cara do Twitter. Já vi de tudo e ainda assim me surpreendi”, conta Lima a Gama. “Consigo entender a discussão sobre desigualdade econômica, mas em relação aos comentários sobre ter pai, por alguns momentos pensei que as pessoas estavam brincando.” Quando percebeu a corrente de críticas, aliás, ela silenciou os comentários. Hoje o post original, que não foi apagado, conta com mais de 130 mil likes.

Para Júnior, a rede incentiva constantemente as pessoas a opinarem até em casos como esse, que num primeiro momento dizia respeito apenas a Lima e mais ninguém. “O Twitter funciona de um jeito que estimula. As interações são constantes e você vai recebendo respostas conforme o lugar que estiver frequentando ou as pessoas que te seguem.” Essa lógica criaria uma necessidade de aparecer a qualquer custo para ser mais visto e mais seguido. “Comentar sobre o assunto do momento pode te fazer mais famoso do que antes. Isso cria um mercado em que eu só me valorizo se estiver falando sobre algo. Por isso a gente passa a ter uma opinião para tudo.”

Apesar do susto inicial, a paulista hoje brinca com a situação e já pediu até mimos da sorveteria pela publicidade gratuita. “Não foi uma coisa que me deixou mal por ter ofendido alguém. É cansativo receber comentários de tudo que é lado, mas eu filtrei”, conta Lima, que também diz ter recebido muitas mensagens de apoio após o acontecido. “As pessoas costumam dizer que o Twitter é a rede social mais tóxica. Tenho minhas dúvidas. Para mim, é a melhor e a pior, depende muito de como a gente lida com ela. Tenho silenciado assuntos que não me interessam. As notificações que recebo são só de pessoas que me seguem, então diminui bastante a quantidade de hate.”

Pluralidade sem plural

Se o lugar comum é dizer que o Twitter se caracteriza pela diversidade de opiniões, não significa que a maioria delas seja sempre muito diversa. Basta pegar qualquer post sobre algum assunto mais polêmico e dar uma espiada nos comentários. Em alguns casos, várias opiniões são semelhantes entre si ou até se repetem palavra por palavra. “Não existe uma horizontalidade ou nível de diversidade absurdo como a gente tenta caracterizar as redes”, explica Santos. “O fato de muita gente poder se expressar não significa que não haja centros de expressão de determinados pontos de vista.” Esses centros, que vão de meios de comunicação tradicionais a influenciadores, são geralmente muito mais compartilhados que perfis comuns e influenciam a maneira como os usuários formam e expressam opiniões.

Além disso, de acordo com a pesquisadora, a rapidez do Twitter e sua limitação de espaço fazem com que as pessoas se sintam quase obrigadas a tomar um lado em algumas questões: “a favor ou contra, sem muita nuance”. Aí esses posicionamentos se difundem instantaneamente e se tornam visíveis muito rapidamente para muita gente.

Para Júnior, todo esse processo nada mais é do que uma “viralização da indignação”. Ou seja, quando surge algum debate que tem em seu centro uma questão moral, como no caso do tapa de Will Smith, as pessoas já se manifestam dentro de suas bolhas, junto a pessoas que pensam parecido. “Todo mundo vai virar especialista naquela situação, tanto por uma vontade muito grande de participar quanto pelo modo que isso chega até a gente. Está ao alcance dos meus dedos, como não vou dizer algo?”

Enganos e desenganos

Até dentro de um jornal do tamanho do New York Times, a percepção sobre o Twitter não parece ser das melhores. Recentemente, o site de notícias Business Insider vazou um memorando interno recomendando que os quase dois mil jornalistas que trabalham na publicação “reduzam significativamente” sua atuação e o tempo que passam na rede social e que tratem seu conteúdo com “ceticismo jornalístico”. O posicionamento por parte da publicação nem chega a ser uma novidade. O editor-executivo do Times, Dean Baquet, também já fez críticas ao Twitter, e a desconfiança parece ter se intensificado depois que o atual homem mais rico do mundo, o CEO da Tesla Elon Musk, se tornou o maior acionista da plataforma.

A iniciativa casa com a recomendação da jornalista, mestre em comunicação social e escritora Januária Cristina Alves, para quem todo o cuidado é pouco na rede social. “O terreno da informação é sempre pantanoso, ainda mais nos dias de hoje, em que estamos vivendo uma sobrecarga, uma verdadeira era da desinformação”, aponta a pesquisadora, que é coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (Moderna, 2019) e colunista do Nexo. Para ela, uma vantagem do Twitter é ser uma das redes com a maior presença de jornalistas — mas, ainda assim, nem tudo que você vê ali é confiável. “A grande sacada é ser um leitor saudavelmente cético, aquele que, como princípio, desconfia.”

O terreno da informação é sempre pantanoso, ainda mais nos dias de hoje, em que vivemos uma sobrecarga

Até dentro de um jornal do tamanho do New York Times, a percepção sobre o Twitter não parece ser das melhores. Recentemente, o site de notícias Business Insider vazou um memorando interno recomendando que os quase dois mil jornalistas que trabalham na publicação “reduzam significativamente” sua atuação e o tempo que passam na rede social e que tratem seu conteúdo com “ceticismo jornalístico”. O posicionamento por parte da publicação nem chega a ser uma novidade. O editor-executivo do Times, Dean Baquet, também já fez críticas ao Twitter, e a desconfiança parece ter se intensificado depois que o atual homem mais rico do mundo, o CEO da Tesla Elon Musk, se tornou o maior acionista da plataforma.

A iniciativa casa com a recomendação da jornalista, mestre em comunicação social e escritora Januária Cristina Alves, para quem todo o cuidado é pouco na rede social. “O terreno da informação é sempre pantanoso, ainda mais nos dias de hoje, em que estamos vivendo uma sobrecarga, uma verdadeira era da desinformação”, aponta a pesquisadora, que é coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (Moderna, 2019) e colunista do Nexo. Para ela, uma vantagem do Twitter é ser uma das redes com a maior presença de jornalistas — mas, ainda assim, nem tudo que você vê ali é confiável. “A grande sacada é ser um leitor saudavelmente cético, aquele que, como princípio, desconfia.”

O terreno da informação é sempre pantanoso, ainda mais nos dias de hoje, em que vivemos uma sobrecarga

E se informar de forma mais segura nem é tão difícil assim, apesar de requerer um pouquinho mais de esforço. Segundo Alves, o caminho é simples: basta estabelecer uma pequena lista de fontes confiáveis e checar toda informação obtida em redes sociais em dois ou três desses lugares antes de sair espalhando e comentando por aí. Ao que parece, no entanto, apenas uma parcela mínima das pessoas age dessa forma, motivo pelo qual fake news se alastram mesmo depois de desmentidas. “Os números indicam que uma informação equivocada é 70% mais compartilhada que a real. Geralmente é um conteúdo emocional, mais bombástico, que você compartilha ou comenta porque está impactado.”

A onça vegana

A fama dos cancelamentos e problematizações no Twitter é tanta que alguns casos que parecem absurdos à primeira vista podem enganar quem não mergulha mais fundo na história. Um exemplo recente foi o de uma onça-pintada do Pantanal supostamente cancelada por alguns usuários por, como qualquer animal selvagem e carnívoro faria no seu lugar, se alimentar de uma capivara que conseguiu capturar.

O problema é que, quando analisado comentário a comentário, pouquíssimos usuários de fato se incomodaram com a situação, que é natural na cadeia alimentar. Por outro lado, uma imensa maioria inflou os comentários simplesmente fazendo graça com o cancelamento do bicho ou reclamando do rumo que as discussões costumam tomar na plataforma.

A pesquisadora Nina Santos lembra que o Twitter não é nem deve ser uma ferramenta de pesquisa de opinião pública. Portanto, não é porque um tema ganhou muita visibilidade que todas as pessoas que falaram daquilo necessariamente estão contra ou a favor. Além disso, diz Santos, é preciso lembrar que a rede está infestada dos temidos bots, usuários total ou parcialmente automatizados que hoje correspondem a uma parcela relevante dos perfis e que complicam ainda mais a análise dessas reações.

Por outro lado, de acordo com a pesquisadora, a visibilidade que determinados assuntos acabam ganhando na rede pode sim influenciar a forma como as pessoas enxergam a realidade. “Se você entrar no Twitter e vir que #BolsonaroTemRazão está bombando, isso pode dar a impressão de que todo mundo está a favor do presidente e influenciar a maneira como você forma sua opinião. Mas não significa que todo mundo que twittou aquilo é a favor. Muita gente está se manifestando contra a hashtag, mas acaba contribuindo para sua visibilidade. Existem, inclusive, estratégias de disputa política que passam por se apropriar de determinados termos no Twitter.”