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Crianças e fake news: quando começar a falar sobre mentiras

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  • Post publicado:18 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

Quando me convidam para palestras, especialmente se elas são para professores, gosto muito de iniciar a conversa perguntando desde quando eles entendem que é interessante começar a falar para as crianças sobre verdades e mentiras, e mais especificamente sobre o fenômeno da desinformação, as tais fake news. Depois de uma delas, não tive mais nenhuma dúvida de que a resposta é: desde cedo, desde sempre. Em um desses eventos uma professora narrou um episódio com uma aluna de quatro anos que, na tão famosa “roda de conversa” que é comum na educação infantil escolar, perguntou a ela, direto e reto o que são fake news. A professora falou que piscou duas vezes e teve de pensar para responder. Mas, antes de mais nada, quis entender por que a garotinha queria saber sobre esse assunto, aparentemente tão distante da sua realidade. Ao que a pequena respondeu:

– Porque a minha mãe passa o dia no celular dela resmungando: mas isso é um absurdo! É fake news! Então, eu queria saber o que são elas e porque o celular da minha mãe tem tantas dentro dele! – disparou a menina.

Bem, para encurtar a história, a professora levou o ano inteiro trabalhando com a turma os conceitos do que é verdade, mentira, informação, opinião, desinformação. Claro que tudo isso devidamente adaptado ao contexto e à condição leitora do grupo. Segundo ela, o trabalho foi incrível e ao final do ano a turma realizou um “jornal falado” para apresentar aos pais e funcionários da escola. “E não houve uma só criança que não soubesse descrever o que é uma fake news”, encerrou. Ou seja, já não é mais possível jogar para debaixo do tapete esse tema que é tão complexo quanto danoso para a humanidade. Precisamos falar sobre fake news com as crianças… já.

Foi essa convicção que me levou a escrever o livro “#XôFakeNews: uma história sobre verdades e mentiras” (Editora Nova Fronteira), ilustrado pelo amigo e desenhista Maurício de Sousa, que emprestou os personagens da Turma da Mônica Jovem e a Tina, sua personagem estudante de jornalismo – que no livro já cresceu e se formou jornalista, tornando-se uma checadora de notícias – para protagonizar a história. O livro nasceu com o firme propósito de levar o tema para a casa das crianças e adolescentes, para a escola, bibliotecas e a todos os espaços pelos quais trafegamos e nos comunicamos. A aventura aborda temas que estão em voga como a infodemia, o ciberbullying, o cancelamento, os influencers e seu papel dentro e fora das redes, dentre outros. E pela maneira como as pessoas têm reagido, elogiando, divulgando, compartilhando as ideias contidas no livro, ele chega em boa hora.

Em que pese a classificação etária – que é quase que obrigatória quando se trata de literatura infantojuvenil – o livro tem chegado a todas as idades e provocado reflexões sobre o tema, e mais especialmente sobre a hora certa de se falar com as crianças sobre verdades e mentiras. Afinal, sabemos que os mais novos estão chegando às redes cada vez mais cedo, ainda que legalmente só possam ter conta nelas aos 13 anos. Uma pesquisa global feita pelo grupo de saúde do Reino Unido Lenstore apontou que o Brasil é o terceiro país do mundo em que as crianças passam mais tempo conectadas às telas (o primeiro são Emirados Árabes Unidos e o segundo os Estados Unidos). No Brasil, 94% da população infantil está na internet, gastando mais de 10 horas navegando na web todos os dias. Os números são impressionantes, daí a preocupação dos adultos sobre o que fazer para lidar com essa questão o mais cedo possível.

NÃO É MAIS POSSÍVEL JOGAR PARA DEBAIXO DO TAPETE ESSE TEMA QUE É TÃO COMPLEXO QUANTO DANOSO PARA A HUMANIDADE. PRECISAMOS FALAR SOBRE FAKE NEWS COM AS CRIANÇAS JÁ

Em meus estudos tenho relacionado a educação midiática à educação literária. Ambas versam sobre a mesma matéria: a necessidade de aprendermos (e ensinarmos) a ler e a compreender o mundo desde a mais tenra idade. Desde que Jean-François Champollion decifrou os hieróglifos egípcios, depois de 15 séculos de completa incompreensão, aprendemos que ler é um processo que vai muito além de decodificar signos, e que envolve a relação do leitor com o texto, que é lido e de alguma forma também escrito por quem tenta decifrá-lo. O processo da leitura no papel é o mesmo realizado nas redes, acrescido do desafio de que lá estamos sujeitos aos algoritmos, que nos rastreiam e exibem os conteúdos que entendem que gostamos, concordamos, curtimos e compartilhamos. Com a velocidade meteórica da circulação desses textos não nos é permitido recriá-los e, como os bots, também passamos a lê-los mecanicamente, deixando de exercer o poder da nossa criatividade leitora, o que empobrece demais essa experiência. E é aí que mora o perigo.

As redes embaralham o mundo on e off-line e os textos ali contidos expressam uma realidade na qual não se consegue mais distinguir a verdade da mentira. O olho dos algoritmos não nos vê de fato, e por isso não nos representa. Os conteúdos que nos chegam dão pouca – ou nenhuma – margem para que possamos conferir-lhes sentido e a leitura crítica passa por aí: se não pudermos questioná-los, reinterpretá-los e recriá-los não haverá relação entre texto e leitor, e então, a leitura não passará da decodificação mecânica de hieróglifos. Diz-se que, ao morrer, Champollion chegou à conclusão de que decifrar aqueles símbolos tinha a ver com deixar claro que eles encerram um mistério insondável, que se revela na leitura, e que por sua vez, leva à certeza de que ele jamais será completo e claro em sua plenitude. Isso porque um dos grandes objetivos dos textos é produzir sombras e por meio delas, outras leituras.

Educar para as mídias é educar para a leitura, cujo campo de atuação é propiciar instrumentos e reflexões para que o leitor possa experienciar esse jogo do claro e escuro, o esconde e revela, o jogo da leitura. Mas isso exige tempo, exercício constante e especialmente um espírito inquieto e questionador, tanto de quem ensina como de quem aprende. Estudos já evidenciam que os bots e algoritmos são incapazes de desvendar os mistérios e desejos de uma pessoa que faz escolhas mais complexas do que a maioria. De alguém que, antes de mais nada, pensa sobre o que lê ou vê. O ser humano é único e original, e o texto capaz de formar leitores críticos faz com que nos percebamos assim. Com certeza um dos grandes aprendizados do nosso tempo será “confundir” os algoritmos com a nossa singularidade. E isso começa com a leitura de textos inspiradores, onde quer que eles estejam. Cabe-nos exercitar, conosco mesmos e com as crianças e jovens, essa escolha.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/Crian%C3%A7as-e-fake-news-quando-come%C3%A7ar-a-falar-sobre-mentiras
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