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Leitores como construtores de sentido

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  • Post publicado:18 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

“Somente nos relatos de Marco Polo, Kublai Khan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a desmoronar, a figura de um desenho tão fino a ponto de evitar as mordidas dos cupins.” Assim começa a obra “As cidades invisíveis”, de Ítalo Calvino – um dos escritores mais importantes do nosso século – que já se tornou um clássico da literatura mundial. Nesse livro, assistimos ao encontro entre o mercador veneziano Marco Polo e o imperador dos tártaros Kublai Khan, no qual o aventureiro narra ao soberano a sua viagem a 55 cidades diferentes que, teoricamente, fazem parte do império do tártaro. Mas “As cidades invisíveis” é bem mais do que isso: é uma metáfora instigante sobre o diálogo, a imaginação e sobretudo a respeito do poder da narrativa. Segundo o próprio Calvino: “Se meu livro ‘As cidades invisíveis’ continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido encontrar em um único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjecturas”.

A lembrança do livro de Calvino e sua relação com a recepção e construção de narrativas me veio à mente ao tomar conhecimento da pesquisa realizada por economistas da UCSB (Universidade da Califórnia em Santa Bárbara), publicada no Journal of the European Economic Association na qual se constatou que, quando estão imersas em suas “bolhas” ou “câmaras de eco”, ou seja, quando os indivíduos estão em grupos que pensam e acreditam em coisas iguais a eles, têm dificuldades de avaliar se aquelas informações são fidedignas ou não. No entanto, se essas pessoas são expostas a informações de fontes confiáveis, nas quais percebem que há evidências suficientemente seguras de que aquela informação é acurada, tendem a duvidar daquelas que circularam em suas bolhas. O que o estudo concluiu, tendo como pressuposto a ideia da “crença motivada” – que é aquela que ocorre quando uma pessoa acredita em algo porque quer que seja verdade e não porque está embasada em evidências – é que quando as pessoas acessam dados que não conheciam anteriormente para tomar decisões em um grupo, elas abrem mão do desejo de responder às informações apenas por meio do raciocínio motivado e tendem a estabelecer uma relação mais saudável com elas, buscando checá-las antes de acreditar nelas e repassá-las.

O que tal fato nos revela é que o contato com as informações de qualidade levam o leitor a duvidar da primeira coisa que vê à sua frente. Ele começa a perceber a diferença entre o que é falso, ilusório, manipulador e o que é uma narrativa que promove a reflexão e a busca de sentido. E é precisamente aí que entram os diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. No começo do livro vemos um imperador que não conhece a língua do explorador e que assiste aquela “contação de histórias” com um tanto de deslumbramento e estupefação, e outro de tédio e um certo desespero na tentativa de compreensão do que ouve. À medida em que ele vai se apropriando não só da linguagem, mas do contexto no qual Polo descreve as cidades, Khan vai sentido-se seguro para construir sua própria visão sobre elas: “… vou descrever as cidades e você verificará se elas realmente existem e se são como eu as imaginei”, diz ele a um Marco Polo bastante surpreso, pois ao final da descrição do Tártaro, logo afirma que aquela cidade que o imperador acabou de narrar é igual àquela que ele descreveu anteriormente. Aqui o vínculo entre narrador e ouvinte se estabelece e ambos se percebem como faces da mesma moeda. Nesse momento, eles se dão conta de que é a narrativa que sustenta as cidades invisíveis, e que elas só continuarão a existir na medida em que esse contrato entre eles tornar-se cada vez mais sólido.

SE AS PESSOAS NÃO SE SENTEM AMPARADAS POR DADOS NOS QUAIS CONSEGUEM IDENTIFICAR INFORMAÇÕES COM SENTIDO, ELAS OPTAM POR ACREDITAR EM QUEM ESTÁ DIZENDO AS VERDADES EM QUE ACREDITAM

Tal vínculo lembra aquele que vemos nas bolhas. Com a sutil – e fundamental – diferença de que essa aliança não é autoritária e nem restritiva, é uma rede que garante que as cidades não desmoronem, que continuem erguidas sobre as bases do respeito à visão e às informações que cada personagem tem e traz daquilo que vê, ou imagina. Se dentro das câmaras de eco houver espaço para o contraditório, o dissonante, para as comparações, dúvidas, checagens e mais, para que cada membro possa desmontar a crença do outro e construir uma outra diversa daquela, baseado em argumentos estruturados, elas se transformarão em espaços de diálogo. E tal como os nossos personagens, os participantes terão a chance de exercitar não apenas o seu espírito crítico, mas o seu direito de expressar como interpretamm os fatos, sem a intenção de criá-los (pois fatos são fatos, não nos esqueçamos!).

Se quisermos formar leitores construtores de sentido, capazes de furar suas bolhas, temos de construir um ambiente informacional mais plural e convidativo ao posicionamento crítico. Não que isso seja simples – como nenhuma transformação no universo online e em especial nas redes é – mas é possível buscarmos fontes mais sólidas que amparem a criação de argumentos baseados em evidências, de modo que façamos escolhas que levem em conta algo mais sustentável do que apenas o desejo de nos sentirmos seguros em fazer parte de um grupo com o qual nos identificamos. A pesquisa da UCSB evidenciou que, se as pessoas não se sentem amparadas por dados nos quais conseguem identificar informações com sentido, elas optam por acreditar em quem está dizendo as verdades em que acreditam (mesmo que não creiam 100% nelas).

Na Era da Desinformação as narrativas que produzimos e acessamos fazem parte do “capital” que regula as trocas de informações, que atesta a cidadania digital, são parte do fluxo de bens, daquilo que estabelece a forma como se dão as relações no universo on e off-line. São mercadoria e como tal, buscam consumidores e não construtores de sentido. Cabe a cada um de nós, leitores e escritores do mundo, o papel de nos tornarmos inovadores, desconstruindo crenças modeladoras e aprisionantes, rompendo com os modos de ver e agir cristalizados, erguendo novas formas de pensar a realidade, reafirmando, a cada palavra, história, pensamento crítico, que vale a pena seguir construindo e reconstruindo as nossas cidades (in)visíveis.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

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