Quando falo sobre fake news para crianças bem pequenas, costumo contar duas histórias emblemáticas e bastante conhecidas. Gosto de começar por um dos contos de fadas mais famosos de todos os tempos: “João e Maria”, dos Irmãos Grimm. De maneira bastante sintética essa é a história de dois irmãos que foram abandonados na floresta por seu pai e sua madrasta porque ambos não conseguiam alimentá-los. Na noite anterior ao abandono, as crianças ouvem a conversa dos pais, e João, muito inteligentemente, resolve levar diversas pedrinhas no bolso para marcar o caminho e assim, conseguir voltar para casa. E são essas pedrinhas que, de fato, os ajudam a encontrar o caminho de retorno algumas vezes (mas, infelizmente, são levados à floresta novamente), inclusive no final da história, que, como todo bom conto de fadas, termina com o reencontro com o pai querido e todos felizes para sempre.
A segunda história é a fábula “O pastor e o lobo”, na qual um jovem pastor, entediado porque está sempre sozinho com as ovelhas, resolve gritar por socorro para o pessoal das redondezas dizendo que o lobo estava vindo. Grita “Lobo, Lobo!” tantas vezes que, quando, de fato, um lobo de verdade aproxima-se das ovelhas, é incapaz de impedir que as bichinhas acabem na barriga do bicho, tendo, ao final de tudo, de ouvir do sábio da aldeia a moral da história: “Na boca do mentiroso, o certo é o duvidoso”. “E essa história entrou por uma porta e saiu por outra e quem quiser, que conte outra!”, encerro eu. Só que não. O que a minha experiência tem mostrado é que elas são apenas o começo de um trabalho que tem se revelado muito interessante com crianças, pais e educadores no que se refere à Alfabetização Midiática.
Histórias como essas abrem portas importantes para que as crianças façam uma associação quase que direta com o universo online que, para o bem e para o mal, conhecem tão bem. Não é difícil para elas, já aos cinco, seis anos de idade, relacionarem a floresta imensa, escura, cheia de caminhos e atalhos desconhecidos, à internet. O nosso pastor entediado de cara é relacionado àquela pessoa que espalha fake news. Animadas, muitas crianças chegam a afirmar que a internet pode ser “a terra das fake news” – tal como Peter Pan tem a sua Terra do Nunca -, e a partir daí, entram, por meio desse universo mágico, em um ponto fulcral da questão que mais tem preocupado o mundo nesse momento: as crianças têm sido um alvo fácil e constante da desinformação e, mais especificamente, das fake news. São vítimas, por exemplo, das teorias conspiratórias como as que afirmam que as vacinas causam doenças graves ou mesmo fazem com que “a gente vire jacaré”. O que fazer para protegê-las desse fenômeno tão nocivo?
Essa questão tem preocupado não apenas pais e educadores, mas também os estudiosos e pesquisadores da Alfabetização Midiática e Informacional. Uma reportagem da prestigiada revista Scientific American ouviu diversos professores e pesquisadores de Educação Midiática e todos constataram que o problema cresceu de forma preocupante nas duas últimas décadas. Eles relatam que precisaram, por exemplo, trabalhar com estudantes que negam a existência do Holocausto e da epidemia do covid-19. E o que é mais assustador é que tal fato está ocorrendo entre crianças e jovens que possuem acesso à internet garantido e que estão habituadas a navegar nas redes sociais. Ou seja, os chamados “nativos digitais”.
AS CRIANÇAS TÊM SIDO UM ALVO FÁCIL E CONSTANTE DA DESINFORMAÇÃO E, MAIS ESPECIFICAMENTE, DAS FAKE NEWS. SÃO VÍTIMAS, POR EXEMPLO, DAS TEORIAS CONSPIRATÓRIAS
Pois é. Parece que nascer com o dedinho que desliza fácil no tablet ou no celular, ou ter as informações do mundo inteiro a um clique de distância não garante que se tenha condições críticas de circular com segurança no universo online. Alan Rusbridger, jornalista, professor e diretor do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo comenta esse fato: “Eu me choco agora até quando encontro estudantes brilhantes, pergunto suas fontes de informação e eles respondem: Facebook. Eu insisto: Sim, mas de onde vem antes do Facebook? Eles olham pra você com estranheza, sem entender. É muito importante sensibilizar os jovens para a existência de fontes confiáveis e não confiáveis. Que eles precisam questioná-las e não devem compartilhar a menos que saibam serem notícias verdadeiras. As pessoas têm toda a responsabilidade, como os jornalistas, em relação à informação. Daí a (importância da) alfabetização sobre mídia.”
As pesquisas indicam que, de fato, as crianças são alvos fáceis para as notícias falsas. Segundo um estudo de 2021 no jornal acadêmico British Journal of Developmental Psychology, 14 anos é a idade em que, normalmente, as crianças começam a acreditar nas teorias conspiratórias. Muitos adolescentes também têm dificuldade em avaliar a credibilidade das informações online. Em um estudo de 2016 envolvendo quase 8.000 estudantes dos EUA, pesquisadores da Universidade de Stanford descobriram que menos de 20% dos estudantes do ensino médio questionaram seriamente alegações falsas nas mídias sociais, como um post no Facebook sobre radiação nuclear em uma determinada área no Japão. De posse dessas informações, o que os diversos pesquisadores do mundo inteiro – e aqui destaco especialmente os esforços de todos os que compõem a Mil Alliance, Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco, composta por mais de 700 organizações, governos e indivíduos nos cinco continentes, da qual tenho o privilégio de fazer parte – querem saber é o que fazer para preparar as novas gerações para saberem diferenciar uma ilação de um fato comprovado, uma opinião de uma informação. Na reportagem da Scientific American os entrevistados são unânimes em afirmar que a Educação Midiática é, com certeza, um dos caminhos mais eficientes: “Uma ferramenta que as escolas podem usar para lidar com esse problema é chamada de Alfabetização Midiática. A ideia é ensinar as crianças a avaliar e pensar criticamente sobre as mensagens que recebem e a reconhecer falsidades disfarçadas de verdade. Para crianças cujos pais podem acreditar em teorias conspiratórias ou outras mentiras alimentadas pela desinformação, a escola é o único lugar onde podem aprender habilidades para avaliar tais alegações objetivamente” enfatiza a matéria.
Porém, como os entrevistados destacam, as investigações sobre os efeitos da Educação Midiática ainda são incipientes. Há muito o que se pesquisar para entender não apenas se checar fatos ou produzir conteúdos para as mídias sociais na escola funciona para a formação de cidadãos mais participativos e conscientes no universo digital, mas, sobretudo, se estamos formando crianças e jovens capazes de aprender a equilibrar o que David Buckingham, professor emérito da Loughborough University e do Kings College de Londres, chama de “ceticismo necessário”, como a crença nos fatos verificáveis. Peter Adams, vice-presidente sênior de educação do News Literacy Project nos Estados Unidos, chama atenção para essa delicada e complexa questão: “Achamos que algumas abordagens para a alfabetização midiática não só não funcionam, mas podem realmente sair pela culatra, aumentando o cinismo dos alunos ou exacerbando mal-entendidos sobre o modo como a mídia jornalística funciona”.Penso que a saída continua sendo apostar na educação, sem dúvida. Mas ela precisa estar estruturada a partir de elementos construtores da capacidade leitora das crianças e jovens. Afinal, estamos falando de leitura de mundo. E não se aprende a ler a não ser lendo desde cedo, e com método. A Educação Midiática precisa, também, ser entendida como um bem público e portanto, deve ser uma política pública, para além de constar apenas em um campo, em uma única área de estudos, como ocorre em nossa Base Nacional Comum Curricular. Só assim, encontrando João e o pastor entediado com constância e, sobretudo, com um genuíno prazer em entender que o mundo é complexo e que as verdades são relativas, é que teremos crianças e jovens curiosos, investigativos e desconfiados, na justa medida. Um trabalho que, ao que tudo indica, está só começando.
Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2022/Os-nativos-digitais-s%C3%A3o-alvos-f%C3%A1ceis-para-as-fake-news
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