Você que lê esse artigo conhece alguém que esteja fora das redes sociais? Que não tenha conta em nenhuma delas, que não curta, comente, poste ou compartilhe algum conteúdo que ali circula? Duvido que tenhamos muitos “sim, conheço”. Para o bem e para o mal, trafegar pelas redes sociais tornou-se sinônimo de estar por dentro do que acontece no mundo, estar informado (ou desinformado, infelizmente), ou mesmo de conseguir ampliar os contatos pessoais e de trabalho. Dados recentes dão conta de que hoje em dia (talvez esses números já tenham crescido exponencialmente enquanto escrevo esse texto) o YouTube tem perto de 2,3 bilhões de usuários registrados, o Instagram 1,22 bilhão, o TikTok 800 milhões e o Twitter 350 milhões. Aqui nem incluí o Facebook, que também possui um número impressionante de pessoas que lá circulam mas já não está mais no topo do ranking.
Mesmo que muitos de nós estejamos fora das redes sociais, a maior parte da humanidade é impactada por elas, seja economicamente, socialmente, culturalmente e/ou pessoalmente, claro. Portanto, como ninguém nasce sabendo como se comportar diante das inúmeras situações que a vida e a convivência nesse mundo nos impõem, precisamos falar sobre a importância da educação para as redes. Por conta desse fato e do pedido de muitos pais e educadores para que esse tema seja abordado de maneira mais estruturada, o Instituto Emília me convidou para ministrar o curso “Educação para as redes: como construir contranarrativas na internet”. Aceitei a tarefa e o desafio porque creio que, quando as comunidades educativas se mobilizam diante de um tema, algo de produtivo e evolutivo surge desse movimento. O propósito é refletir sobre como nos portamos nas redes sociais e mais especialmente como podemos educar as crianças e jovens que já estão nascendo nesse ambiente tão complexo e cheio de questões pungentes.
Nas redes sociais encontramos “tudo junto e misturado”, como dizem os jovens internautas. As fronteiras antes tão claras nos meios de comunicação com os quais estávamos acostumados como a TV, os jornais, o rádio, se liquefizeram com o advento da internet. O mundo passou a caber na tela do computador e, mais recentemente, nos nossos celulares. O público e o privado se fundiram, o negócio e a opinião se misturaram e os usuários tornaram-se também produtores, dando origem ao que se chama atualmente de “produsers” (junção das palavras produtores com utilizadores). As crianças e jovens foram classificados como tais, para o entusiasmo de uns, que entendem que, dessa maneira, estão se tornando pessoas com um maior potencial de participação e protagonismo democrático, e ceticismo de outros, que questionam que tipo de participação seria essa, e em que medida ela garantiria o exercício da cidadania por parte desse público.
AS FRONTEIRAS ANTES TÃO CLARAS NOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COM OS QUAIS ESTÁVAMOS ACOSTUMADOS COMO A TV, OS JORNAIS, O RÁDIO, SE LIQUEFIZERAM COM O ADVENTO DA INTERNET
Esse papel duplo e simultâneo nas redes tem rendido muitos debates. Recentemente, em sua coluna para a Folha de S.Paulo, Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro,propõe a criação de um outro termo: “um neologismo em inglês como “usered”, mistura de “user” com “used”. Ou, em português, “usuado”, para se referir a quem usa, mas também é usado”. Isso porque, como bem observa: “O termo usuário dá a impressão de alguém que usa alguma coisa. No sentido original e romântico da palavra, é quem se senta na frente do computador para fazer algo. Só que no mundo de hoje não é o usuário que usa a tecnologia, mas é utilizado por ela (…) no mundo de hoje, em que a tecnologia, sensores e câmeras estão em toda parte coletando dados, é muito mais fácil ser utilizado do que utilizar. Não importa mais se você está logado ou não. Você não é só usuário do seu smartphone, mas está sendo utilizado por ele”, conclui. A questão da educação para as redes tem tudo a ver com a necessidade de percebermos o nosso papel nelas, como “produsers” ou se achar melhor, como “usuados”. Que tipo de participação estamos tendo? E qual queremos ter?
Responder a essa questão está longe de ser simples e nem permite uma resposta imediata. É necessário refletirmos com a atenção e a profundidade que o assunto exige, levando em consideração algumas questões que definem a nossa postura nas redes sociais. A primeira delas é que é fundamental que compreendamos o que o professor e escritor inglês David Buckingham, especialista em mídias, chama de “capitalismo digital”, ou seja, o modelo de negócios das plataformas está longe de ser inclusivo e democrático, e como qualquer outro negócio, prevê apenas lucro. Nesse caso, o lucro vem de nós mesmos, “usuados”, nossos dados são o grande capital dessas mídias, o que a escritora Shoshana Zuboff denominou mais especificamente de “capitalismo de vigilância”. Compreender esse modus operandi já nos garantirá, logo de cara, que não tenhamos grandes ilusões de que teremos uma participação criativa e verdadeiramente protagonista nas mídias sociais. Os meios são a mensagem, já dizia Marshall McLuhan, o que faz com que nossa comunicação ali se paute pelo que as redes esperam (e ganham) de nós.
Isto posto, a outra importante reflexão que devemos fazer é sobre a diferença entre interatividade e participação. Ao contrário do que muitos pensam, elas não são sinônimos. Como bem define o estudioso de mídias americano Henry Jerkins, “a interatividade é propriedade da tecnologia, enquanto a participação é propriedade da cultura”. O que quer dizer que a participação deve ser um projeto educativo, de construção de cidadãos conscientes de seus direitos, possibilidades de atuação social, de seus deveres e compromissos consigo mesmos e com o seu entorno. Os cliques, likes e comentários não passam do que os pesquisadores de mídias chamam de “pequenos atos de envolvimento” que, como diz o próprio termo, dispensa maiores comentários.
A meu ver, a educação para as redes deve focar na formação dos educadores para serem mediadores dessa participação das crianças e jovens nas redes sociais, entendendo que ser protagonista nelas tem a ver com muito mais do que produzir narrativas e interagir nas plataformas por meio de comentários, memes e que tais, mas sobretudo, com ser capaz de produzir conteúdos relevantes, criativos e principalmente que façam sentido para quem os produz e para a comunidade no qual se está inserido. É fundamental que essas temáticas sejam a expressão de quem as produz e seu contexto. Participar das redes sociais deve incluir especialmente, o exercício de ouvir e respeitar o outro, sem o qual não se pratica o diálogo, algo tão fora de prumo nesse ambiente. A construção das contranarrativas nesses meios é um dos pilares da educação midiática e fará com que possamos avançar da mera esfera do consumo para o desenvolvimento de competências e habilidades que nos permitam viver com mais justiça, ética e sustentabilidade na era digital.
Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
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