Pais, educadores e sociedade precisam tomar para si a tarefa de educar e isso deve ser o compromisso de todos os envolvidos
Mal assimilamos o massacre ocorrido em um supermercado em Buffalo, no estado de Nova York, nos EUA, no qual um jovem de 18 anos matou 13 pessoas, sendo 11 afro-americanas, transmitindo o “evento” ao vivo pela plataforma Twitch e deixando um manifesto de 180 páginas explicitando o que o levou a praticar tal ato – a crença na supremacia branca -, assistimos ao massacre de 19 crianças e de dois professores (número divulgado até o momento em que escrevo esse texto) em uma escola primária em Uvalde, Texas, também nos EUA. Apesar de o segundo não ter uma influência tão direta das redes sociais como o primeiro, que foi planejado para ser exibido on-line, não é difícil imaginar que o jovem também de 18 anos que praticou o crime (e depois foi morto) tenha tido contato com conteúdos impróprios na internet, que facilita que qualquer pessoa encontre não apenas armas e munições à venda, mas aprenda a manejá-las. Até onde vai a responsabilidade das plataformas na disseminação desses conteúdos? Como exercer o controle necessário para evitar tragédias dessa monta? Seguimos em busca das respostas enquanto nos chocamos dia a dia…
ENQUANTO GOVERNOS E INSTITUIÇÕES BUSCAM MANEIRAS DE FORÇAR UMA REGULAÇÃO MAIS SEVERA DAS PLATAFORMAS, ALGO TEM DE SER FEITO PELA COMUNIDADE RESPONSÁVEL PELAS CRIANÇAS E JOVENS
Uma nova pesquisa da Tech Transparency Project, iniciativa da ONG americana Campaign for Accountability, encontrou, no YouTube Kids, conteúdos não indicados à faixa etária de 0 a 12 anos, o público-alvo da plataforma. Vídeos sobre drogas, armas e que exibem dietas prejudiciais à saúde foram identificados pela organização. “O YouTube Kids diz que fornece conteúdo apropriado para crianças. Mas a plataforma continua permitindo que vídeos nocivos alcancem seu público jovem vulnerável”, afirmam os pesquisadores. A mãe de uma menina de 10 anos que morreu no ano passado está processando o TikTok e sua proprietária ByteDance por alegar que o algoritmo da empresa promoveu o chamado “Desafio do Blackout” no feed da criança. A mãe, Tawainna Anderson, da Pensilvânia, disse que sua filha Nylah morreu no ano passado depois que asfixiou-se ao tentar realizar o “jogo” que incentiva as pessoas a se filmarem prendendo a respiração ou engasgando até desmaiar. Documentos do tribunal da Pensilvânia, onde a mãe abriu a ação, afirmam que o desafio foi recomendado a ela por meio do algoritmo que “determinou que o mortal Blackout Challenge era bem adaptado e provavelmente interessaria a Nylah Anderson, de 10 anos”. Um cenário que se desenrola debaixo dos nossos narizes, muito preocupante e que pede ações imediatas e extremamente práticas.
Neste mês, a União Europeia atualizou a sua estratégia “para uma internet melhor para as crianças”, iniciativa que foi adotada em 2012 e que agora ratifica o objetivo de “melhorar os serviços digitais adequados à idade e garantir que todas as crianças sejam protegidas, capacitadas e respeitadas online”. A vice-presidente executiva da Comissão, Margrethe Vestager afirmou que “toda criança na Europa merece prosperar em um ambiente digital seguro e empoderador. Com a nova estratégia, queremos apoiar o acesso a dispositivos e habilidades digitais para crianças, especialmente aqueles em situações vulneráveis, combater o cyberbullying e proteger todas as crianças de conteúdos online prejudiciais e ilegais. Isso está de acordo com nossos valores fundamentais e princípios digitais”.
A estratégia da UE define a sua visão para uma década digital para o público infantojuvenil com base em três pilares fundamentais: experiências digitais seguras, empoderamento digital e participação ativa. Na prática, trata-se de implementar uma série de ações e programas com o apoio de diversos setores da sociedade, incluindo a indústria da mídia digital. Há quem diga que essas medidas contribuirão para um estado de “vigilância generalizada” uma vez que as empresas deverão monitorar os conteúdos encriptados de cidadãos comuns, passando ao largo do problema central que são hackers e as “blackdoors”, por onde circulam conteúdos que acabam chegando às crianças sem nenhum tipo de controle. Para os críticos dessa operação, o problema continuará a existir caso não se invista maciçamente na educação do público-alvo para enfrentar e lidar com as ameaças que lhes chegam de todos os lados. As próprias crianças que foram ouvidas para a elaboração do documento reconheceram que, em que pese sejam capazes de reconhecer o ciberbullying, conteúdos violentos e campanhas de desinformação, precisam ser incluídas na elaboração das estratégias de combate a esses malefícios. Ou seja, desejam sentir-se consideradas, ouvidas, acompanhadas e apoiadas para trafegarem no universo digital ao invés de serem suposta e sumariamente “protegidas” sem compartilharem como se sentem e quais experiências têm favorecido seu crescimento e aprendizado na internet.
Parece claro que, enquanto governos e instituições das mais diversas áreas buscam maneiras de forçarem uma regulação mais severa das plataformas sociais, algo tem de ser feito hoje, pela comunidade responsável pelas crianças e jovens. Pais, educadores e sociedade em geral precisam tomar para si a tarefa de educar para as redes e isso deve ser o compromisso de todos os envolvidos, inclusive do público-alvo. O que acontece no mundo online reflete a cultura, as crenças e valores do mundo offline, portanto, integrar os dois mundos por meio da escuta ativa de quem ali transita pode ser um passo de extrema importância para se combater tragédias como as que temos assistido nos últimos tempos. Afinal de contas, o que se deseja nas redes é pertencer a um grupo, sentir-se incluso em uma comunidade, compartilhar ideias e propósitos. Façamos, pois, isso também em casa, na escola e na vida real, enfim.
Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.