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Ser bem formado para tornar-se bem informado

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  • Post publicado:18 de agosto de 2022
  • Categoria do post:Artigos

De acordo com uma estimativa das Nações Unidas, a população mundial ultrapassou 7,8 bilhões em abril de 2021. Dentre esses mais de 7 bilhões de habitantes do planeta, cinco têm acesso à internet. Mais de 25 milhões de terabytes são gerados diariamente no mundo todo para que essa parcela privilegiada possa acessar informações de toda ordem. Segundo o relatório Cappra, do Cappra Institute, em 2019 geramos 20 vezes mais informações do que em 2005. Uma quantidade de informação que, se parece complicado ter consciência do que esse número significa, qualificar, então, é impossível. Porém, sabemos que onde sobra informação falta discernimento para decidir o que fazer com ela, pois, como afirma o antropólogo, filósofo e sociólogo francês Edgar Morin “… a informação sempre passa por uma seleção. Informação não é conhecimento. Conhecimento é a organização das informações”. E é aí que mora o desafio.

O cenário que se coloca diante de todos nós é, além de desigual e excludente – porque menos da metade da população mundial tem acesso a todas as informações disponíveis, sejam elas na rede ou fora dela – profundamente desorganizado e poluído, o que, ao invés de nos conectar com as informações que nos permitem fazer escolhas evolutivas e voltadas ao bem-estar de toda a sociedade, está nos separando e esgarçando a teia que nos possibilita construir a empatia necessária para vivermos em um mundo mais justo e sustentável. Mais cedo do que gostaríamos, constatamos que informação demais confunde, desnorteia e faz tanto ou mais estrago do que a ignorância. Como afirma o escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano Umberto Eco: “O excesso de informação provoca amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. (…) Conhecer é filtrar”.

Portanto, é preciso formar para informar. Sobreviver a essa avalanche de informações sem se angustiar, sem se confundir com o que é verdade ou mentira e aprender a se defender da infoxitation – intoxicação por consumo excessivo de informações –, não é tarefa simples. Exige, sobretudo, ter a capacidade de fazer uma leitura crítica não apenas dos conteúdos veiculados nas mídias, como também das próprias mídias. “Um ambiente informacional desorganizado requer que cada pessoa perceba como ela também pode agir como um vetor nas guerras de informação, e desenvolva um conjunto de habilidades para lidar com a comunicação tanto on-line quanto off-line”, afirma Claire Wardle, doutora em Comunicação pela Universidade da Pensilvânia, EUA, e líder de pesquisa da First Draft, uma organização global sem fins lucrativos voltada para o combate à desinformação.

O CENÁRIO QUE ESTÁ DIANTE DE TODOS NÓS É, ALÉM DE DESIGUAL E EXCLUDENTE – PORQUE MENOS DA METADE DA POPULAÇÃO MUNDIAL TEM ACESSO ÀS INFORMAÇÕES DISPONÍVEIS – PROFUNDAMENTE DESORGANIZADO E POLUÍDO

Etimologicamente, “crítica” se origina do grego krinein, que quer dizer “quebrar”. Sem apontar nenhum tipo de coincidência é possível relacionar “crítica” com uma outra palavra que tem a mesma raiz: “crise”. O que nos permite inferir que o leitor crítico provoca uma “crise” quando se depara com algum tipo de conteúdo. Ou seja, ele “quebra” essa informação em pedaços, desconstrói aquele “desenho” e coloca a ideia ali contida em outra perspectiva. Essa conduta provoca um deslocamento de certezas baseadas apenas em opiniões, de preconceitos estruturais repetidos de forma inconsciente e de visões de mundo cristalizadas. O leitor crítico consegue situar suas interpretações no contexto da cultura contemporânea de maneira a ressignificá-la, produzindo questionamentos que, por sua vez, geram uma nova compreensão da realidade. Nesse sentido, podemos afirmar que o leitor crítico atua como um agente “desintoxicante” desse ecossistema informacional desorganizado quando consegue identificar e transformar a desinformação e seus derivados.

Porém, formar o leitor crítico não é algo simples e rápido. Muito pelo contrário. Trata-se de uma tarefa a longo prazo, que deve ser planejada e levada a cabo por um conjunto de atores nas mais diferentes funções sociais. Sem dúvida que a chamada AMI (Alfabetização Midiática e Informacional) deve ser incluída na escola, nos diferentes segmentos, desde a mais tenra infância. Mas não somente. A formação do leitor crítico tem a ver com diferentes ações que acontecem em casa, quando a família não apenas lê junto, mas também dialoga sobre o que acontece em seu cotidiano; na cidade, que amigavelmente disponibiliza bibliotecas e centros culturais onde a troca de ideias e a livre expressão ocorrem cotidianamente; na sociedade civil que, atenta, checa e cobra o acesso aos bens culturais de qualidade a que todos têm direito e, é claro, nos meios de comunicação, responsáveis pela circulação desse “mar de informações”, ao se colocarem como um centro de debate e transmissão de ideias de maneira ética e transparente. Todos esses atores são responsáveis por colaborar para que todos nós, cidadãos, possamos desenvolver uma estrutura sólida de competências e habilidades que nos permitam assegurar os nossos conhecimentos.

Aliás, é interessante refletirmos sobre o conceito de “segurança epistêmica” que expõe Elizabeth Seger, pesquisadora da Universidade de Cambridge e do Centro Leverhulme para o Futuro da Inteligência, do Reino Unido. Esse postulado se relaciona com a manutenção do nosso saber seguro, o que nos garantiria que estejamos, a princípio, bem informados. “A segurança epistêmica, portanto, envolve a garantia de que realmente sabemos o que sabemos, que podemos identificar alegações sem fundamento ou que não são verdadeiras, e que nossos sistemas de informação são robustos a ‘ameaças epistêmicas’, como notícias falsas”, afirma ela.

Ou seja, saber o que sabemos, e consequentemente, do que não sabemos e o que desejamos saber, é o que se denomina curadoria do conhecimento. Para além das definições mais superficiais, essa curadoria relaciona-se com a capacidade de selecionar o que é importante saber. Curar, em português lusitano é “pensar”. Curar o conhecimento, fazer a curadoria, portanto, pode ser definido como pensar sobre o que se quer saber, para quê, por quê. Fazer boas escolhas diante de um catálogo infindável de conteúdos é saber separar a informação útil e verdadeira daquela irrelevante ou falsa, além de conseguir diferenciar as nuances que ficam entre uma e outra, que não são poucas. Esse exercício é o que vai nos conferir uma estrutura cognitiva sólida e resistente, para compreendermos e lidarmos com a complexidade desse ecossistema informacional ambíguo, incerto e volátil no qual estamos inseridos.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

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