No livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, um dos diálogos entre a personagem central e o gato sorridente revela uma dúvida fundamental da menina: “o senhor poderia me dizer, por favor, qual o caminho devo tomar para sair daqui?”, questiona. “Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o gato. “Não faz diferença”, retrucou Alice. “Então, não importa o caminho que você escolher”, disse o gato.
Esse trecho do livro – que, aliás, é um dos mais conhecidos da obra – mostra Alice diante de um exercício que fazemos, em média, 400 vezes a cada dia, 12 mil vezes ao mês, 144 mil vezes ao ano: tomar decisões. Talvez por isso volta e meia tem alguém citando Alice e suas aventuras em um mundo paralelo, que cada vez mais se revela parecido com esse que habitamos. A obra de Lewis Caroll, um clássico, talvez tenha se tornado imortal exatamente por revelar, a cada leitura ou releitura que fazemos dela, um grande jogo de faz-de-conta imitando a vida de todos nós, mortais, às voltas com essas escolhas, que têm se revelado cada vez mais difíceis e complexas, não apenas numericamente, mas em relação às transformações que provocam.
Muitas dessas decisões que tomamos em nosso cotidiano têm sido sugeridas pelos algoritmos que regem as mídias e mais especialmente as redes sociais. Os bots nos seguem, rastreiam os nossos pensamentos, direcionam nossos desejos, comandam o que pesquisamos, compramos, as nossas ideias e jeitos de ver o mundo. Quando o documentário “O dilema das redes” revelou como funcionam os algoritmos nas redes sociais muita gente ficou sem dormir refletindo se há saída possível para esse labirinto em que nos embrenhamos.
Antes de mais nada é preciso voltar no tempo e entender os objetivos pelos quais os algoritmos foram criados. Se antes do advento da internet éramos nós que escolhíamos o que ler, ver, ouvir, quando a rede nos inundou com informações de toda ordem, em um volume, rapidez e formatos que não demos conta sequer de acessar, os algoritmos entraram em ação para nos ajudar a selecionar, dentre o mar de opções disponíveis, o que mais atenderia às nossas necessidades e desejos. Porém, esquecemos de um pequeno detalhe quando eles entraram no jogo: tal como Alice, se não soubermos o que queremos ou para onde vamos, eles seguirão no comando, selecionando esses conteúdos por (e para) nós.
Nunca é demais lembrar que os algoritmos obedecem a uma “clusterização” (segmentação, em português mais claro) que foi programada por uma mente humana, logo, as regras que regem esse mecanismo não foram inventadas pelos bots, mas por nós mesmos. E talvez aí valha a pena refletir sobre o nosso papel nessa situação. As pistas que damos a eles por meio dos nossos cliques, do tempo que gastamos nas redes (e nos conteúdos que consumimos mais horas), do que nos recusamos a curtir, são indicadores preciosos – literalmente, pois sabemos o quanto esse dados são a melhor mercadoria de que se tem notícia nesse momento – para as empresas de mídia. Ou seja, o jogo vai ficando mais desigual se não nos conscientizamos de que cada clique é uma escolha que será contabilizada mais adiante, e que essa conta somos nós que vamos pagar.
SE ESTAMOS IMERSOS NESSA CULTURA DOS ALGORITMOS QUE TEM MOLDADO NOSSA FORMA DE VER E VIVER AS NOSSAS EXPERIÊNCIAS, HÁ QUE SE JOGAR ESSE JOGO COM AS ARMAS QUE TEMOS: A NOSSA CONSCIÊNCIA
Essa semana o Wall Street Journal revelou uma investigação interna realizada por meio da criação de dezenas de contas automatizadas no TikTok. Esses bots assistiram a milhares de vídeos da rede, e com isso, descobriram que é por meio da quantidade de tempo que você passa nos vídeos que eles descobrem suas preferências. O que eles levam em conta é o quanto você assiste, assiste novamente ou hesita em ver até o fim cada um dos vídeos que acessa. Talvez seja por isso que o Instagram entrou na onda e também anunciou recentemente que irá priorizar a exibição de conteúdos em vídeo na plataforma. Simples assim: os algoritmos revelaram que o que as pessoas “querem” mesmo é ver vídeos, então é vídeo que as redes oferecerão como produto principal. Mas… será que é isso mesmo?
A resposta cabe a cada um de nós. Pensar sobre nossas escolhas trata-se, nos dias de hoje, de um exercício de cidadania dos mais necessários e urgentes. Como diz Pierre Levy, um dos nossos mais importantes pensadores sobre a ciência da informação : “cada vez que você dá um like, compartilha alguma coisa ou usa uma hashtag, você está contribuindo para a construção de uma memória coletiva. Esta é uma responsabilidade que nós temos e que vocês devem levar a sério. Existem bons usos e maus usos das ferramentas. Eu diria que a melhor coisa que nós podemos fazer é educar as pessoas desde muito jovens a serem responsáveis individualmente nessa nova rede de comunicação e ensiná-las a pensar criticamente”. Ou seja, não dá para culpar apenas os bots e as mídias. Cada um de nós tem seu quinhão para dar conta nesse jogo.
Se estamos imersos nessa cultura dos algoritmos que tem moldado nossa forma de ver e viver as nossas experiências no universo on e offline, há que se jogar esse jogo com as armas que temos: a nossa consciência e capacidade de fazer escolhas baseadas em critérios éticos e sustentáveis. Não que seja tão simples quanto clicar, mas é possível e exequível, desde que pensemos antes de executarmos as nossas interações nessas mídias. Como diz o escritor Eduardo Gianetti: “creio, porém, na força do desejo de cada ser humano de fazer de sua vida o melhor de que é capaz; creio no princípio socrático de que o autoconhecimento – uma visão clara e crítica dos valores que regem a nossa existência – é parte indispensável da melhor vida ao nosso alcance”.
Retomando a história de Alice, e aproveitando para incluir mais dois personagens de clássicos das histórias universais, penso que seria interessante seguirmos o exemplo de João e Maria, os meninos que não se perderam na floresta onde foram deixados à sua própria sorte porque marcaram o caminho percorrido com as pedrinhas que haviam levado consigo ao sair de casa. Os meninos fizeram uma escolha pela sobrevivência, é claro, mas também selecionaram a alternativa que garantiu a eles a dose de certeza necessária para continuarem vivos: a marcação do caminho de volta ao que é conhecido e seguro.
Uma estratégia de sobrevivência nas redes – essa floresta sem fim! – talvez passe por aí: pela construção de um caminho seguro, que nos leve à uma convivência responsável e solidária nesse planeta. O que precisamos nesse momento é estarmos certos de que o que verdadeiramente nos empodera são as escolhas que fazemos. Por isso, é fundamental estarmos no comando do jogo. Tal como Alice, se continuarmos perdidos em um mundo paralelo nunca chegaremos a lugar nenhum. E é sempre bom lembrar que quem ficou na Terra do Nunca foi Peter Pan, o menino que nunca cresceu.
E aí, você sabe para onde quer ir?
Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação – ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
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